Estes, pois, ficaram, para por eles provar a Israel, para saber se dariam ouvido aos mandamentos do SENHOR, que ele tinha ordenado a seus pais, pelo ministério de Moisés.    

Juízes 3:4 

Talvez o livro dos Juízes não seja um dos favoritos dos cristãos leitores da atualidade. A presença de nomes esquisitos e as narrativas repetitivas dos juízes que eram levantados para libertar o povo da opressão dos inimigos oferecerem um tom monótono aos leitores de nossos dias. É certo que quase todo mundo gosta de história, mas nem todas as histórias prendem a atenção das pessoas hoje em dia. Por isso que estes e outros fatores representam um desafio à leitura deste livro da Bíblia. A proposta é justamente despertar sua atenção para o conteúdo desse livro que, de certa forma, deve ser encarado como um livro de transição. Como assim? O livro de Juízes está situado entre dois importantes períodos históricos do povo de Israel, o período dos patriarcas e o período da monarquia. Porém, muito mais do que isso o período deve ser visto como um período de promessas cumpridas. Uma terra havia sido prometida aos descendentes de Abraão (Gênesis 12). Juízes, portanto, abarca justamente o período em que os descendentes de Abraão habitam a tão famosa terra que “mana leite e mel” (Êx 3:17), ou seja, terra boa que estaria sob direção do Deus provedor. O que aconteceu nesse momento da vida do povo? Como era viver dentro de uma promessa cumprida? O conteúdo dessa lição tentará responder a estas perguntas fazendo o recorte de uma narrativa específica. Falaremos sobre a narrativa do primeiro juiz, Otniel. As informações contidas nesta narrativa nos dão uma noção importante sobre o tipo de compromisso assumido pelo povo com Deus. A partir disso, procuraremos extrair alguns princípios para serem pensados em nossa época. 

PECADO: IDOLATRIA

O versículo 7 oferece-nos uma informação que irá se repetir ao longo do livro, isto é, “os israelitas fizeram o que o Senhor reprova” (Juízes 3:7 NVI). Essa reprovação referia-se à propensão do povo israelita de recorrer aos ídolos dos demais povos. A questão não era a ruptura total com o Deus da Aliança do Sinai. O povo reconhecia a presença do Deus do Sinai em sua memória social, contudo não haviam se desvinculado da herança dos ídolos territoriais dos antepassados (Josué 24:15 NVI). O conflito surgiu pelo fato de que o Senhor, que se revelou no Sinai, não aceitava adoração compartilhada. O primeiro mandamento assim prescreve: “Não terás outros deuses além de mim” (Êx 20:2 NVI). Todavia, em sua larga maioria, a cultura dos povos em geral comportava o politeísmo (adoração a mais de um deus). Assim, o monoteísmo era uma coisa estranha à normalidade cultural daquelas sociedades. Somado a isso ainda havia o fato de o Senhor Deus ter proibido a confecção de qualquer tipo de imagem de escultura que visasse a representá-lO. Isso também era uma quebra de paradigma. Pois, como adorar um Deus que não se vê e não se toca? Entretanto, essa era a proposta trazida pelo Criador, ou seja, sem rivais e sem representações, mas apenas uma fé que se cultiva no coração e transborda para a experiência do dia a dia.

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Se o Senhor foi tão claro, então por que o povo fez o contrário? Fizeram o contrário pelo fato de que desde os antepassados o povo de Israel nunca extirpou definitivamente a idolatria de sua cosmovisão. Por isso que estavam sempre à mercê de se esquecerem de Deus. O fato de ser dito no versículo 7 que o povo se esqueceu do Senhor não significa uma amnésia total. Esquecer aqui traz o sentido de não considerar o Senhor conforme os termos da Aliança do Sinai. Por outro lado, a Bíblia nos narra momentos em que o povo fez afirmações de aliança como em Josué 24 Contudo, o fato de existirem essas convocações gerais para que o povo relembrasse as intervenções divinas e assim assumissem um compromisso com o Todo Poderoso não garantia uma adesão incondicional ao monoteísmo. A chamada para servir a Deus era nacional e geral, só que nem todos se comprometiam. A prova é tanta que Josué procurou restringir seu compromisso apenas a sua casa, ou seja, a sua família ou clã, quando disse: “Mas, eu e minha casa serviremos ao Senhor” (Josué 24:15 NVI). Josué havia vivido tempo suficiente para presenciar os deslizes do povo, sabia que era um povo difícil e teimoso.

Considerado isso, voltemos para nosso texto específico. Quem eram os deuses com quem as tribos de Israel estavam provocando ira ao Senhor? Os deuses eram Baal (ou baalins no plural) e Aserá. Os povos que habitavam a terra de Canaã prestavam culto a vários deuses. A divindade “El” era tido como uma espécie de “deus-pai”, ou deus principal. Porém, parece não ter exercido um papel tão destacado na vida e cultura do povo cananeu. A principal divindade era Baal, palavra de origem semítica que em nossa língua portuguesa é traduzida por senhor. A raiz da palavra significa: ele governa, ou ele possui. Também traz o significado de “proprietário da terra”. Essa divindade estava no centro da gestão do cosmos e entranhada na vida cultural dos povos de Canaã. Por isso que encontramos na Bíblia outros nomes complementados ao de Baal como Baal-Berite (Juízes 8:33), Baal-Peor (Deuteronômio 4:3; Salmos 106:28), Baal-Zebube (2 Reis 1:2), os quais estavam relacionados a certos eventos e locais de caráter religioso.

De acordo com o ciclo mitológico, as divindades entravam em guerra uns com os outros e também casavam-se, gerando filhos ou filhas que também eram divinos. Na religião cananeia a esposa de Baal era Aserá, também chamada na Bíblia de Astarte, 1 Reis 11:5 e Astarote, Juízes 2:13 1 Samuel 7:13. Essas variações nos nomes poderiam estar relacionadas ao uso da língua de determinados povos e ao próprio complexo processo de transmissão das tradições que incorporavam novos elementos ao longo do tempo. “Importantes no mito cananeu eram a morte e a ressurreição de Baal que correspondia à morte e à ressurreição da natureza, cada ano” . Acreditava-se que a cada celebração anual dos ritos dessa religião renovava-se as forças da natureza, assegurando assim fertilidade do solo, dos animais e dos seres humanos.

Apresentadas essas brevíssimas informações sobre a religiosidade cananeia, eis que surge uma questão: em que isso contribui para o presente estudo? Contribui no sentido de conduzir os leitores/as a um contexto mais amplo e que nem sempre está presente no texto bíblico. Somente quando consideramos estes e outros fatores que nem sequer foram mencionados aqui é que podemos entender um pouco sobre o porquê o culto a estas divindades persistiram por tanto tempo na vida do povo de Israel. Como vimos, uma vez que Baal significava senhor e seu domínio se estendia sobre vários aspectos da existência, muitos israelitas acabaram por fazer uma correspondência com o Deus que havia se revelado a Moisés. Yaweh3 também era Senhor, também controlava as estações, era o responsável por abençoar as colheitas e a multiplicação da família. Nesse sentido havia uma espécie de sincretismo. Ou seja, as entidades divinas eram as mesmas, mas tinham nomes diferentes. E as diferenças, como já foi dito acima, tinham que ver com a transmissão da memória cultural religiosa.

Com isso não se está querendo apresentar uma justificativa. A idolatria sempre foi condenada pelo Deus de Israel e assim será. Entretanto, o que essas informações quiseram mostrar é que a bagagem cultural que eles traziam antes de conhecerem a Yaweh, o Deus da Aliança no Sinai, não se desfez de um dia pro outro. Isso nos leva a refletir que o que estava acontecendo na época dos juízes era uma baalização de Yaweh, ou uma javeização (ou monoteização) de Baal. Estava ocorrendo uma assimilação das estruturas religiosas e por isso foi tão difícil extirpar o baalismo da vida de alguns israelitas.

PUNIÇÃO: OITO ANOS DE OPRESSÃO

A narrativa bíblica segue e nos diz que a ira do Senhor se acendeu contra o povo (v.8). Como forma de punição, o Senhor entregou os israelitas nas mãos do rei da Mesopotâmia, Cusã-Risataim. Indivíduo de quem se tem pouca informação. Seu nome na realidade é uma espécie de apelido que se traduz por “Cusã duplamente mau” . O termo “Cusã” era um termo antigo que designava os midianitas. Sobre a Mesopotâmia, Cundall e Morris recorrem a Wiseman que diz ela era uma “... terra fértil” e que sua localização geográfica atualmente seria “o leste da Síria e norte do Iraque” .

Politicamente Canaã não tinha um governo centralizado. Mas, cidades que funcionavam como uma espécie de estados independentes com monarcas próprios. A maior parte das cidades que compunham a região de Canaã estava na planície, uma vez que as regiões montanhosas eram mais difíceis de serem povoadas. O processo de assentamento de Israel naquelas terras não eliminou todos os povos em derredor. Algo que, por certo, facilitava essas investidas desses povos contra os israelitas. Sem governo centralizado e sem exército permanente as tribos israelitas ficavam em certa condição de vulnerabilidade. Somado a isso, ainda havia a questão de as tribos não viverem unidas. A falta de união de todas as tribos se dava por separação geográfica e também por acomodação, pois uma vez conquistadas as terras, não havia propósito maior pelo que lutar. O livro de Juízes até menciona certa união de tribos por uma causa comum como foi o caso de Débora e Baraque (Juízes 5). Mas são casos isolados. Isso aponta para os fatores contextuais históricos e políticos que Deus usava como forma de disciplinar seu povo. Para Cusã-Risataim oprimir aquele grupo de israelitas próximos era uma oportunidade de obter escravos e cobrar impostos. Por oito anos aquele grupo de israelitas foi oprimido. Mas havia chegado o momento de livrarem-se daquele jugo.

LIBERTADOR E JUIZ: OTNIEL

O versículo 9 diz assim: “Mas, quando clamaram ao Senhor, ele lhes levantou um libertador...” (Juízes 3:9 NVI). O libertador dessa ocasião foi Otniel, o primeiro juiz. Segundo alguns estudos, o nome Otniel significa “leão de Deus”, já para Wiersbe, aponta para “Deus é força” . Seu grau de parentesco com Calebe e Quenaz o remetem a tribo de Judá (Cf. Juízes 1:4-14). A função dos juízes (shopetim) era temporária. Apenas por causa da opressão eles eram levantados. Geralmente suas ações eram seguidas de um período de paz até o povo abandonar o Senhor novamente. Curiosamente, não há registro de que o Senhor tenha operado sinais e prodígios para libertar seu povo. A libertação vinha pelo fato de os juízes portarem certo carisma, sem o qual dificilmente conseguiriam ter autoridade sobre a tribo. Este carisma tinha haver com a personalidade deles. Isto é, portavam coragem, compromisso, obediência, etc. Características importantes para gerenciarem seus clãs, ou famílias. Contudo, vale lembrar que a personalidade não era o fator determinante. É importante frisar que o Espírito do Senhor vinha sobre o juiz para que ele pudesse obter êxito. O escritor do livro de Juízes faz questão de apresentar uma leitura teológica da situação. A libertação só vinha quando o povo clamava e aí sim o Senhor investia-os com Seu Espírito para empreender a façanha. Apesar de não termos nenhum detalhe sobre o andamento da guerra de Otniel contra Cusã-Risataim, o resultado foi a vitória. 

QUARENTA ANOS DE PAZ

A vitória de Otniel trouxe paz para aquele setor da terra prometida. Nunca é demais lembrar o leitor/a que o autor do livro de Juízes está alinhavando episódios que necessariamente não tem um escopo global. Essas opressões eram sempre locais. O clã e a tribo de Otniel gozaram paz por quarenta anos, mas isso não quer dizer que essa paz era uma realidade para as outras tribos. O narrador não está tão focado numa sequência temporal, apesar de que para os leitores atuais é exatamente isso que parece. Antes ele quer apresentar um quadro geral. O período de paz esteve atrelado ao tempo que Otniel viveu enquanto juiz. Quando morreu o povo voltou a fazer o que o Senhor reprovava.

CONCLUSÃO

Aprendemos que a estrutura cultural pré-mosaica arraigada por anos foi um dos fatores cruciais para a idolatria persistente nas tribos israelitas. O Deus que havia se revelado a Moisés e aos demais hebreus no Monte Sinai era um Deus “novo”. Por isso era necessário conhecê-lO. Infelizmente, o que o Senhor tinha proposto não foi assimilado de forma completa. O povo coxeava entre mais de um pensamento. Em nossos dias acontece o mesmo. É verdade que não vivemos debaixo de uma configuração tribal. Mas o princípio que devemos extrair é o de que ainda hoje as pessoas trazem a bagagem da velha vida para tentar acomodá-la a nova vida. Sem sombra de dúvidas isso não dará certo. Claro que a maturidade da vida cristã não se dá instantaneamente. Há um processo. Mas o que aconteceu no livro de Juízes não foi progresso, mas sim retrocesso. Outra lição que podemos tirar é que nem sempre Deus vai intervir de forma miraculosa, ou seja, através de sinais e prodígios. Deus só precisa de nossas atitudes e compromisso. Assim como aconteceu a Otniel é possível que o fruto de nosso empenho seja restrito a um período de tempo. Nem sempre as ações de Deus através de nós atingem o nível macrossocial. Isto é, dure pouco tempo e atinja poucas pessoas. Mas o que importa é que para o Senhor o nosso trabalho jamais será em vão (1 Coríntios 15:54).

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO EM CLASSE

1 – Em sua opinião porque o sistema tribal, operante na época dos juízes, não favorecia a uma unidade de todas as tribos e nem a um compromisso mais efetivo com o Senhor Deus?

2 – De acordo com a bênção de Jacó em Gênesis 49:8-12 direcionada a tribo de Judá podemos captar uma espécie de vocação desta tribo para conduzir as demais, e possivelmente agregá-las em torno de uma causa comum (Juízes 1:1-2). Seria a inadimplência vocacional de Judá o fator desencadeante para o comportamento do povo ao logo do período dos juízes?

3 – Quem foi Otniel e o que você poderia falar sobre a personalidade a partir do texto de Juízes 1:11-14?

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4 – Que leitura você faz do comportamento de Deus nesse período dos juízes?

5 – Que outros princípios você poderia retirar dessa lição e aplicar a sua vida cristã hoje?

Notas de rodapé

1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Baal. Acesso em: 16/08/2018.

2 BRIGTH, John. História de Israel. São Paulo: Paulus, 2003. P.152.

3 Há uma discussão em torno do significado do nome Yaweh por parte dos estudiosos. Mas é provável que tenha a ver com a forma causativa do verbo ser, trazendo a ideia de o “deus que cria ou produz”, cf. BRIGHT, J., p.197.

4 PINTO, Paulo. Baal, adn de Deus: a génese do conceito de Deus único no mundo da Bíblia à luz do ciclo de Baal. Lusitania Bíblica: Série de estudos, v.1. Disponível em: revistas.ulusofona.pt/index.php/seriemonograficacienciadasreligi/article/view/.../2702. Acesso em: 16/08/2018.

5 BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. Cf. nota c. p.352.

6 DOUGLAS, J.D (ORG.).O Novo dicionário da Bíblia. 2ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. P.381.

7 CUNDALL, A.; MORRIS, L. Juízes e Rute: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1986. p.72.

8 BRIGHT, J. Op. Cit., p.153.

9 WIERSBE, W. Comentário Bíblico Wiersbe Antigo Testamento. Santo André: Geográfica, 2008. p.253.

10 BÍBLIA DE JERUSALÉM, Op. Cit., nota b. p.352.

11 FEE, Gordon; STUART, Douglas. Como ler a Bíblia livro por livro: um guia de estudo panorâmico da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2013. p.86.

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